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quinta-feira, 21 de setembro de 2017

O Gueto do Cinema

Publicado como Editorial na edição 4 do Zine Gueto - Metragem


Por Daniel Neves

            Existe um fator que mencionamos na raiz do projeto Zine Gueto – Metragem e que transformou a maneira de se fazer cinema, qual seja, a mudança na captação de película, material extremamente caro e sensível, para o digital, mais barato e mais ágil. Com o avanço da tecnologia cresceu a quantidade de pessoas que puderam ter acesso aos equipamentos mínimos para se produzir filmes. No Brasil dos últimos 15 anos, vamos observar diversos grupos do chamado cinema independente, feito com poucos recursos, mais autoral, e em boa parte dos casos por fora de editais públicos.
            Historicamente o cinema sempre foi uma arte cara, basta notar o modelo americano dos grandes estúdios, mega corporações que monopolizam o processo de produção e distribuição em quase todo o mundo. Essa indústria centralizadora na forma afeta também o conteúdo através de uma padronização da criação artística e temática, onde os filmes são produtos descartáveis feitos em larga escala.  
            Por fora do domínio de Hollywood, estão os cinemas nacionais que lutam incessantemente para ter uma pequena fatia do mercado de distribuição em seus próprios países e, é claro, o dito “cinema de arte”, supostamente contraponto da indústria que se reduz a fazer filmes para meia dúzia de intelectuais de festivais. Esses filmes, embora nem se comparem ao orçamento americano, inclusive estando praticamente a margem deste, ainda são caros, considerando os valores para a maioria da população brasileira, por exemplo.
            O fato de um filme ser feito com ou sem dinheiro não determina necessariamente a sua qualidade enquanto arte que toca o público e diz algo sobre a vida. A questão aqui é mais objetiva, trata – se das condições que se tem para fazer.


            Ora, se já é difícil fazer filmes sem grana, imagine nas periferias urbanas, locais geralmente afastados dos centros e espaços culturais, onde educação, transporte e saúde são precários, há uma desgastante carga horária de trabalho, problemas com saneamento básico e condições de moradia, falta de segurança.
            Para quem é periférico, o buraco é mais embaixo, temos que sobreviver, temos que pagar conta, segurar as tretas do dia – dia. Sem poder fazer um curso de cinema, temos de lidar com os desafios da nossa vida pessoal e com a incompetência de um estado corrupto que é sustentado por nós.     
            Como, então, vamos fazer cinema? Certamente queremos falar de nossas vivências, de nossas raízes, das mazelas que presenciamos, romper com a imagem que a mídia faz do gueto, é de dentro do processo.
            Nesse contexto, surgiram diferentes “coletivos” nas quebradas das metrópoles brasileiras, Cine Becos, Cine Escadão, Éguas Audiovisual, Cinema da Baixada Fluminense, Filmagens Periféricas e o NCA (Núcleo de Comunicação Alternativa). Essa efervescência na cena do vídeo tem uma ligação com o atual movimento de cultura periférica como um todo, na literatura, no teatro, na música.
            Porém, não nos enganemos ao criar uma “vanguarda cultural” diferenciada nas quebradas, nem pensemos que estas se reduzem a violência e pessoas alienadas que não sabem a verdade política do mundo. A cultura sempre existiu pelos guetos, será que teremos de relembrar Cartola, Nelson Cavaquinho, Viola Nordestina, Roda de Choro e a imensa diversidade cultural que constitui a nossa história, desde os ambientes rurais aos urbanos?
            O cinema de periferia, em alguns filmes, traz muito essa ideia da cultura popular, inclusive quando faz exibições no próprio bairro, geralmente para pessoas que fizeram ou vivenciaram o processo do filme. Num encontro que traz reflexão, mas traz prazer, como ouvir o sambista tocando no boteco.
            Todavia, não temos como afirmar que existe um único cinema de periferia, na verdade isso é mais uma generalização acadêmica que se refere a grupos embrionários de algo que está dando os primeiros passos. São várias periferias, mais do que isso, várias pessoas que tem sua visão, sua experiência, seus anseios. Além disso, essa identificação geográfica carrega outros problemas, por exemplo, o que é periferia? Como definir um cinema apenas pela sua localização exata? Se é feito no centro não vale? Quais bairros se enquadrariam nisso? Quem define?
            Hoje, na Companhia Bueiro Aberto, costumamos dizer que não estamos no cinema do gueto, mas no gueto do cinema, isto é, todo filme produzido de forma independente, fora da grande indústria, sem tentar equalizar isso a partir de onde mora ou como vivem as pessoas que fazem o trabalho.
            Esse cinema independente tem um lugar privilegiado, a liberdade artística, ele não precisa se submeter a qualquer padrão, seja do mercado, seja político, seja estético, pode criar sua própria maneira de fazer, experimentar os gêneros. Desse modo, não faz sentido pra ele a diferenciação entre cinema de arte e cinema comercial.



            Infelizmente, ainda sofre com a distribuição, não é muito visto, mas tem imenso potencial para quebrar o monopólio do mercado e apresentar novas formas de produzir e pensar o mundo.

(Imagens do cineasta brasileiro Glauber Rocha, um dos idealizadores do movimento Cinema Novo, ocorrido entre os anos 50, 60 e 70)

segunda-feira, 18 de setembro de 2017

Como editamos nossos filmes

Publicado na Coluna Oficina de Cinema na edição 5 do Zine Gueto Metragem


Por Daniel Neves

A montagem no cinema

Quando estamos no Set de produção, é hora de executar tudo que foi planejado no extenso período de pré – produção. Em geral, para dar mais agilidade logística, gravamos nossos filmes em dois ou três dias. Toda equipe adentra um processo de troca, de diálogo, ao mesmo tempo que cada um cuida mais especificamente de uma parte. Luz, câmera, ação, cria-se um mundo imaginário, não é mentiroso nem real, mas é verdadeiro.
Terminadas as gravações, parece resolvido. Porém, só cumprimos metade do processo. Vai o diretor – montador se responsabilizar por cuidar de todo material captado, adicionando ainda trilha sonora, sonorização, coloração e por aí vai. Ou seja, o momento da montagem é onde o filme se completa. Dado esse nível de compromisso, tal etapa do trabalho pode durar mais tempo do que tudo que fora feito anteriormente. No cinema independente, o filme parece que nunca vai ficar pronto, sempre falta algo, até na estreia ainda enxergamos o que se possa melhorar. Para mim, um filme fica pronto quando não consigo mais mexer nele, embora eu ainda queira.
A montagem é tão importante que definiu a própria linguagem do cinema, como disse o mestre Einsenstein, cineasta soviético da primeira metade do século 20 que investigou cuidadosamente os cortes. Num filme, usamos diversas outras artes, mas elas só fazem sentido,  só viram cinema, quando são editadas. Basicamente, montar é cortar e colar, você vai juntando pedaços de vídeos, todavia, não é uma junção aleatória, parte muito do que se sente, de que emoção se quer passar. Não é, necessariamente, um caminho linear, mas está, como todo o resto, ligado ao roteiro e à linguagem da direção.


Como já retratamos em outras edições do zine, até cerca de 20 anos atrás, o único material usado para se fazer um filme era a película. Após a filmagem, o cineasta reunia os negativos, que eram bem complicados de serem armazenados. Na sala de montagem, existia a “Moviola”, equipamento em que se rodavam os rolos de filmes. Fazia- se o corte na tesoura e se usava uma cola para fixar os pedaços.
Não há dúvida que a recente adesão ao digital facilitou imensamente esse processo. Agora, armazenamos as imagens em cartões de memória, na média baratos, onde cabem horas e horas de arquivo. Depois guardamos tudo em HDs externos ou nuvens na internet. É bom organizar isso em pastas com nomes de cenas ou temas. Antes de iniciar a montagem, assistimos tudo diversas vezes, fazemos anotações, debatemos.
Em vez da moviola, temos, praticamente em qualquer computador, o acesso aos programas de edição. A licença de um costuma ser cara, mas é possível comprar craqueado. Adquirindo um CD pirata de 10 reais conseguimos programas como Premier, Sony Vegas etc.


Com o material importado para o programa, vem à etapa essencial da montagem: o corte. Como escolher a melhor imagem? Numa cena de ficção, por exemplo, um personagem se vira para o outro e vai dizer que o ama. A fotografia me deu um plano aberto mostrando os dois e um plano no rosto do personagem que fala, além de um detalhe da boca dele. Começo em qual dos planos? Termino em qual? E se for um documentário em que uma determinada pessoa fala para a câmera sobre o grande amor da sua vida e eu tenho dela planos se arrumando no espelho, andando no quintal, fazendo café, olhando uma foto, como monto isso, como reúno esses retratos e trago significado para eles?
Uma dica essencial dada por muitos montadores é a intuição, como afirma o consagrado montador Walter Murch no seu clássico livro “Num Piscar de olhos, Zahar, 2004”. O autor editou filmes como o épico “Apocalipse Now, de Copolla, 1979”, e defende a ideia de “sentir o corte”, como numa piscada de olhos. Deixe a maré te levar.


É comum que no começo seja uma coisa bem nebulosa, o segredo é ir tocando até que em dado instante se consiga visualizar o todo. A montagem satura, é preciso parar de vez quando, deixar de editar, relaxar, até mostrar o filme pra amigos, ver outros filmes. Como lugar tão decisivo, buscamos na Companhia bueiro Aberto fazer montagens coletivas, com duas ou três cabeças dialogando.
Sabemos que, independente de documentário ou ficção, o cinema conta uma história, tem um discurso, reúne uma cadeia de acontecimentos e dá sentido a eles. Desse modo está nas mãos do montador a determinação do ritmo. Obviamente, como estamos nos referindo ao audiovisual, ou seja, mistura de áudio com visual, é sempre bom já ter o som dos diálogos e ruídos das cenas, além da trilha sonora que vai dizer qual rumo tomar.

Depois do filme montado, vamos para a finalização, que é justamente a edição de som e a edição de imagem, esta última cuida da colorização. Mas sobre esses dois aspectos da pós – produção, pretendemos dar um espaço futuro específico nessa coluna.

sexta-feira, 15 de setembro de 2017

Entrevista com o cineasta Daniel Fagundes

Publicada na edição 4 do Zine Gueto - Metragem

Entrevista por Daniel Neves

Daniel Fagundes é um dos fundadores do NCA (Núcleo de Comunicação Alternativa)


GUETO – METRAGEM: Como nasceu o NCA?

FAGUNDES: Surgiu do encontro meu, do Fernando e do Diego, três caras das periferias da Zona Sul de São Paulo, respectivamente Campo Limpo, Capão e Piraporinha. A gente se trombou num curso de audiovisual realizado pela Ação Educativa e destinado a jovens que tinham uma ligação com alguma militância juvenil nas quebradas, no começo do ano de 2005, e ao final do processo percebemos que vários cursos de audiovisual geram uma expectativa positiva nos jovens, mas depois não têm uma estrutura pra dar continuidade. Aí decidimos continuar a produzir por nós mesmos, fazer algo que pudesse falar das nossas coisas. Notamos muitas demandas em diferentes frentes, tanto a cobertura dos movimentos culturais da quebrada, ter um registro disso, como fazer um contraponto ao que a mídia de massa produz a respeito da população periférica, tipo um enfrentamento mais de mídia – ativista, que tá ligado a ideia de produzir um vídeo - denúncia, como documento que expõe os abusos de autoridade, da polícia até as questões relacionadas às ocupações, vídeos que pudessem contribuir nessas lutas. E também tinha essa coisa de experimentar a linguagem, de observar o quanto a estética é política, pensar um audiovisual contra – hegemônico. Mas o NCA surgiu dessa angústia aí, da vontade de gritar, de ser um canal de comunicação que pudesse colocar outra narrativa e disputar esse espaço simbólico do audiovisual.

GUETO – METRAGEM: Vocês fizeram muitos documentários sobre cultura popular, como um emblemático acerca de “Solano Trindade”. Como é isso?

FAGUNDES: Vimos a possibilidade de fazer algo, como dizia Paulo Freire, entre a denúncia e o anúncio, porque sempre nos incomodou também essa coisa de ficar amarrado a um rótulo, tipo panfletário, a gente pode acabar muito viciado, perder nossa criatividade nos diversos assuntos. Por isso fomos atrás de pesquisar e estudar a cultura popular urbana e a tradicional, trazendo o livro Povo Brasileiro, do Darcy Ribeiro, entender o conceito de identidade, de ser periférico, principalmente no documentário. Daí veio o doc em 2006 sobre o poeta Solano e a família Trindade, um resgate desses personagens tão importantes na nossa formação.

GUETO – METRAGEM: O documentário é um gênero muito comum no cinema independente. Aparentemente, pelo menos na parte logística, ele é mais barato e simples que uma ficção. Essa escolha pelo documentário é estética ou é logística? Ou é as duas coisas?

FAGUNDES: Eu acho que de fato tem essa questão de recursos, em termos de infraestrutura o doc é um pouco mais viável. Mas se você olhar nossa trajetória, a gente começa com uma ficção, em 2005, um videoclipe de Hip Hop, “A Ilha” é a história de três personalidades na quebrada, um cara que é militante, trabalhador, mas é varzeano. Esse vídeo nos trouxe a coisa da construção do roteiro e com ele ganhamos um concurso e podemos comprar a primeira câmera do grupo. Até tem uma história interessante, o Fernando e o Diego cavaram um barranco e ganharam trezentos conto pelo trampo, aí foi o orçamento que custeou a produção, os 300 conto virou 2000. Em 2007 a gente fez também uma experiência de doc – ficção ”Paralelo espaço de Realidade”, discutindo essa questão da insanidade no sistema capitalista, alguns amigos nossos atuaram. Mas de fato fizemos uma série de documentários, como o próprio “Videolência”. Sempre notamos que existe uma linha muito tênue entre documentário e ficção, assim como o documentário não reproduz toda a realidade, a ficção não é totalmente mentira e pode trazer mais verdade que o doc, é relativo.

GUETO METRAGEM: Em 2009, vocês fizeram o “Videolência”, um filme marcante na caminhada do NCA e que retrata o movimento do cinema de quebrada. Como você vê a importância da mudança do digital para a película no contexto do cinema de perifeira?

FAGUNDES: O mais correto a se dizer seria que o digital proporcionou uma popularização da linguagem audiovisual, o acesso a equipamentos, ainda que a gente já tenha tido antes uma série de experiências com película do ponto de vista dos populares, o próprio Zózimo Bulbul, que pegava sobras de película dos sets onde era ator e ia fazer os filmes dele, o Ozualdo Candeias da Boca do Lixo, nessa coisa meio de tomar de assalto, é uma característica que não mudou, porque o audiovisual mesmo não é feito pra nós, é pra indústria, inclusive esse digital. Quando a gente começou, falávamos que fazíamos vídeo, não cinema, pra marcar uma posição política de se ligar a essa história da produção popular da BVP (Biblioteca de Vídeo Popular) na década de 80. Esse nome “cinema de quebrada” traz em si mais uma caixinha acadêmica onde se enquadram as pessoas que eles querem apontar que fazem um cinema que é diferente do deles, seja por causa da precariedade, seja pelos temas. É um termo cunhado pela antropóloga da USP Rose Satiko, depois de ver nossos trabalhos. Daí a gente traz o nome Videolência contrapondo o filme que ela tinha produzido um ano antes, em 2008, que chamava justamente “Cinema de Quebrada”, queríamos dizer que éramos um vídeo marcado pela violência do estado, da precariedade geográfica, saúde, escola, moradia, a gente achava que esse nome viria pra maquiar uma realidade que é feia. No Videolência buscamos vários grupos que traziam sua visão sobre a periferia e que tinham em comum a posse de uma câmera de vídeo, não era uma câmera de cinema, apesar da linguagem ser parecida. Mas depois a gente foi ficando mais flexível e viu que o ponto era não perder nossa origem, tanta faz o termo.


GUETO – METRAGEM: Como você vê a cena do cinema de periferia atualmente?

FAGUNDES: O ano de 2010 foi nosso auge, a gente tava com uma articulação muito forte, com o circuito de vídeo popular funcionando, grupos do Brasil se reunindo e propondo coisas juntos, conquistamos voz na ANCINE, estávamos organizados, discutíamos a questão do investimento, políticas de incentivo a coletivos. Mas após 2010 começou a ter uma caída, o circuito encerrou, a articulação de vídeo popular parou de realizar reuniões e vários coletivos, alguns até que estiveram no Videolência, se encerraram, outros novos surgiram também, mas poucos sobreviveram. Eu acho que o cinema de quebrada se enfraqueceu, principalmente pelas políticas de investimento que são poucas, até o NCA está agora encerrando as atividades muito por isso, a gente foi envelhecendo, as responsas vêm surgindo, junte isso à nossa desarticulação pra cobrar políticas pro setor, lutar por uma lei de fomento ou edital de vídeo popular.

GUETO – METRAGEM: No Videolência, além da parte documental, há cenas de ficção feitas em formato lúdico, simbólico, quer dizer, não realista, como as crianças que brincam de polícia e ladrão e usam pedaços de canos e madeiras como se fossem armas, não é necessário filmar a polícia e o ladrão para se entender a mensagem.

FAGUNDES: O Glauber Rocha lá no cinema novo já trazia a estética da fome, de na precariedade a gente resolver os problemas técnicos. Em “Terra em Transe”, por exemplo, ele usa uma arma de madeira, o cinema é algo simbólico, você busca representar o real de acordo com o que você tem, mas por outro lado eu ficava irritado por não ter grana, não poder gravar com grua e tal, uma cenografia, direção de arte. Queríamos ter o dinheiro pra fazer o corre, mas o foda é que esse recurso não pode mudar o nosso jeito de ser.


GUETO – METRAGEM: E como funcionou a distribuição dos filmes?


FAGUNDES: A gente teve um projeto, desde 2007, a Videoteca Popular, que é nosso principal canal de distribuição, com exibições públicas, criação de acervo, montamos filmografias de grupos, distribuição em correios, gravação de mídias em DVD, fizemos eventos em escolas, espaços culturais e tivemos nossa própria sede, como uma espécie de locadora gratuita, foi um puta espaço formativo, vimos de Chaplin a Cinescadão, de Leon Hirszman a Filmagens Periféricas. O NCA foi um dos poucos grupos que realizou formação, produção, exibição e distribuição, o cinema, para nós, só faz sentido quando a gente cumpre esses quatro pontos pra chegar no público que queremos, da quebrada. Nas exibições, passamos por experiências malucas, de uma tiazinha do Grajaú que manjava mais de neorealismo italiano do que os caras da academia, pra nós é formar público.