Uma
transformação técnica foi significativa na produção cinematográfica no Brasil dos
últimos dois decênios, a adesão à captação digital. Tal fator influencia
diretamente nas condições de se fazer um filme. Tudo porque o custo da película,
material que era usado na gravação, é extremamente caro, bem como o
armazenamento e montagem dos seus negativos. A ampliação do acesso a
equipamentos que permitem a filmagem com orçamentos pequenos fez com que
surgissem novos atores na cena e uma grande expansão no número de obras
produzidas, principalmente nas periferias urbanas. O cinema de quebrada dá
alguns passos, ainda não sabemos muito bem qual estética ele coloca, eis o
desafio desse projeto.
Em
geral, o cinema sempre foi uma arte restrita à elite. Isso fica ainda mais
claro quando observamos a predominância do padrão industrial americano, as
chamadas Majors, grandes monopólios, criam um cinema padronizado, caro e
restrito à finalidade do mercado. O resultado são “produtos cinematográficos”
em larga escala, no mesmo formato, sendo a criação artística secundária e a
palavra final vinda do produtor, dono do capital a ser investido. É certo que
soa exagerado negar totalmente o “mercado” de cinema, mas, comprovadamente, um
filme feito unicamente para o lucro perde muito no lado artístico e acaba
defendendo uma ideia única sobre a vida e sobre a sociedade. O pior efeito
dessa unidade imposta é o atropelamento da diversidade cultural.
Por
outro lado, existiram correntes na história do cinema que não se submeteram ao
modelo de Hollywood, tais como o neorealismo italiano, a Novelle Vague, o
cinema novo, marginal, e ainda “autores” que mesmo dentro indústria conseguiram
certa autonomia estética, como é o caso de Hitchcock e Martin Scorsese, por
exemplo.
Um
cinema onde a direção tem mais espaço, os orçamentos são bem menores, a
criatividade é determinante. Todavia, até esse cinema mantém a característica
de não ser feito nem visto pela população em geral, acaba por se restringir à
classe média e a intelectuais. Quem, no Brasil, fazia cinema nos anos 50, 60,
70, 80, 90?
Contudo,
a era do digital e as recentes transformações sociais romperam um pouco essa
estrutura.
Há quem
diga que o filme “Cidade de Deus”, de Fernando Meirelles, tenha sido o estopim.
Em 2009, o coletivo NCA (Núcleo de Comunicação Alternativa), do extremo sul da
capital paulista, produziu o filme “Videolência”, direção coletiva,
que retrata os grupos de cinema independente nas quebradas de São Paulo e do
Brasil, todos surgidos pós anos 2000, tais como
Cine Becos, Cinescadão, Brigada de Audiovisual da via Campesina, Coletivo Artemanha (BA), Filmagens Periféricas, Cinema Nosso (RJ). Entre os
entrevistados, uma fala é bem visível, a reação diante de “Cidade de Deus”.
Estavam impressionados e identificados com a história de Zé Pequeno, todavia,
por outro lado, havia certo incômodo que gerava uma vontade de fazer, esta já
existia e dava os primeiros passos, mas foi potencializada com a obra inspirada
em livro homônimo de Paulo Lins, um livro, aliás, que influenciou
consideravelmente a literatura marginal. O “narrar a si mesmo”. Era hora de nós
filmarmos nossa quebrada.
(Cenas do filme Cidade de Deus, para mim, o maior filme da história do cinema brasileiro, não apenas por sua questão estética, filosófica, narrativa, mas pela sua distribuição que conseguiu abranger um grande público)
Há aí
uma ruptura fundamental de perspectiva, a formação da primeira pessoa que
sempre foi objeto e agora quer ser sujeito. Numa metáfora, imagine o Manuel
filmando “Deus e o diabo na terra do sol”, de Glauber Rocha? Imagine o Buscapé
filmando “Cidade de Deus”?
E foi o
que ocorreu. Não está catalogado pela indústria, alguns festivais parecem
timidamente sinalizar, ainda falta a ANCINE (Agência Nacional De Cinema) se
atentar, mas está ocorrendo uma efervescência de produções nos guetos urbanos.
Além dos
coletivos citados acima que estão no filme do NCA, há tantos outros pelo Brasil,
em especial, na cidade de Guarulhos, Grande São Paulo, onde se desenvolveu o
coletivo Companhia Bueiro Aberto. Outros como Polissemia, Coletivo Kinoférico,
são alguns dos que passaram a produzir no município nesse contexto. A maioria
com orçamentos mínimos e com inovação.
Tanto
as obras que se passam na cidade, aquelas que nós produzimos, como as que são
feitas pelo país, como o Coletivo Éguas, no Maranhão, e o cinema da baixada
fluminense, no Rio de Janeiro, precisam ser aprofundadas para entendermos o que
elas propõem. Tal é o objetivo do Zine Gueto – Metragem.
Portanto, buscamos adentrar essa “nova onda” na história do cinema brasileiro
tanto como divulgação como compartilhamento de experiências de produções.
Até aí,
tudo bem, mas como fazer esse retrato histórico? Através de uma revista? Na
França, durante o período conhecido como Novelle Vague, que representou uma
aula de exploração da gramática cinematográfica, uma revista surgida
anteriormente foi determinante na formação daqueles realizadores e produtores,
a famosa Cahier du Cinemá, concebida pelo mestre da crítica cinematográfica
André Bazin, e que teve como editores ninguém menos do François Truffaut
(diretor de Os Incompreendidos, 1961) e Jean Luc Godard (diretor de Acossado,
1961), ambos construíram longas carreiras com filmes que foram do primor
artístico a crítica política e as relações com a indústria.
Uma
característica fundamental do cinema de quebrada é a “antropofagia periférica”, releitura do modernista Oswald Andrade, termo usado pelo poeta marginal Sérgio
Vaz no texto “Manifesto da Antropofagia Periférica”, em 2007, durante evento
denominado “Semana de Arte Moderna da Periferia”. Nós, que nascemos aqui em
baixo, no submundo social e cultural, quando fazemos arte trazemos a narração
de nosso universo peculiar, com conflitos e questões do nosso mundo e com
linguagens advindas da cultura popular, por exemplo.
No “Manifesto da Imagem Quebrada”, escrito por Daniel
Fagundes (NCA), ele diz:
“Sou viela, escadão, ciranda, morro, busão lotado,
cachorro sarnento,
gente
sorrindo, boca de lobo, boca de fumo, esgoto à céu aberto,
comunhão,
palavrinha e palavrão, balaio de sensações.
Sou o ser das quebradas que porta tal olhar
e que transfere através de um suporte barato
de registro
sua percepção de mundo.
Sou o individuo periférico no planetário
coletivo esférico do lugar,
com
uma câmera na cabeça e uma idéia nas mãos... !
(Cena do filme "Videolência, NCA, 2009", a televisão queimando não é uma destruição pura e simples, mas um chamamento para criarmos nossos próprios meios)
Invertendo o ideal cinemanovista de uma imagem na
cabeça e uma câmera nas mãos, há a defesa de um ponto de vista. Contudo, a
antropofagia periférica não se reduz ao gueto, ela vai ‘dialogar’ e ‘digerir’ a
cultura oficial e formal advinda da elite.
Nesse caso, além da referência da
nossa realidade, a revista francesa é uma inspiração fundamental. De um lado,
ela reunia ensaio de intectuais com análises de filmes e correntes, de outro
dava importância ao modo como eram feitos os filmes de forma a contribuir no
movimento da Novélle Vague.
Ora, isso é o que digerimos, mas não
somos uma Revista feita nos moldes clássicos da crítica de cinema, tampouco nos
restringiremos a escrever para intelectuais e para o público cult.
Assim, junto do cinema de quebrada
temos o Zine de Quebrada, Gueto – Metragem, uma forma de publicação que é comum
na cena independente e que tem sido forte difusior da produção artística. Além
dos textos, ainda traz uma mistura com as artes visuais.
O nome Gueto – metragem é um
neologismo que substitui a palavra dada ao gênero (curta ou longa – metragem)
para criar um identificação geográfica, política e estética que busca retratar,
divulgar e incentivar a produção do cinema nas periferias urbanas, sobretudo na
cidade de Guarulhos.
TEXTO POR DANIEL NEVES (COORDENAÇÃO GERAL, REDAÇÃO E REVISÃO)