Ao
assistirmos a adaptação para o cinema de um livro que já lemos, é comum a
sensação de decepção: “o livro é melhor, faltou isso e aquilo”. Essas
afirmações geralmente vêm do fato de não exigirmos do filme uma “adaptação”,
mas uma reprodução total do que fora escrito.
(A diretora Suzana Amaral)
Acontece
que cinema e literatura, apesar de dialogarem, são expressões artísticas bem
distintas. O escritor de um livro, por exemplo, tem muito mais liberdade do que
o roteirista de um filme, já que aquilo que ele escreve existe por si mesmo,
não será modificado. O roteirista redige pensando em como aquilo será
realizado, sendo que a peça original sofrerá interferência de uma série de
profissionais que vão realizar aquilo em imagens e criar o mundo daquela
história. Daí ser impossível se traduzir um livro inteiro em imagens, pois este
não é feito para tal objetivo.
(Marcélia Cartaxo em "A Hora da Estrela")
Boa
parte dos filmes presentes na história do cinema são adaptações de livros. Se
por um lado esperamos demais deles, por outro alguns de fato fogem totalmente
da ideia central do autor. Segundo a consagrada cineasta brasileira Suzana
Amaral, não cabe à cineasta fazer um livro filmado, mas captar o conceito da
obra, assim pode excluir e adicionar cenas, mudar a trama.
Suzana
dirigiu um filme fundamental na tradição do cinema brasileiro e que nos serve
como base: “A Hora da Estrela”, de 1986, é adaptado do livro homônimo de Clarice
Lispector e narra a saga de Macabéa, uma migrante nordestina solitária que se
instalou no Rio de Janeiro.
Imagine seres humanos
totalmente anônimos, experiências que não são vistas pela sociedade,
personagens excêntricos, simples, profundos, malucos, quietos, esquecidos. Vai
entender... Esse é o filme de Suzana, esse é o livro de Clarice, cada um feito
de um jeito.
No
livro, temos um narrador (Rodrigo S.N), que nos deixa nervoso ao demorar 26
páginas para apresentar o que ele chama de incompetência, aquela que vê a sua
ferrugem no espelho, Macabéa. No filme, o narrador não existe, a diretora vai
direto para ela. Isso porque a parte do narrador é muito literária.
Deixemos
o livro de lado e observemos o universo suburbano em que vive aquela tímida
datilógrafa, inocente, parece que não cresceu, com suas roupas fora de moda,
vivendo na pequena pensão do subúrbio, chega a ser porca, come enquanto digita,
belisca uma coxa de frango enquanto mija num pinico. Se tiver anseios, são
inalcançáveis, só pode alçar as coisas mais simples.
No
amor, essa nordestina vai se aconchegar com quem está próximo dela, Olímpico,
um sonhador trabalhador vindo da Paraíba. Os dois se encontram em meio à
urbanidade, acham - se um no outro.
Dentro
dos seus mundos tão singulares, cortam as cidades, ela cheia de perguntas, a
curiosidade pueril que adentra a profundidade da vida sem licença ou enfeites,
ele como louco, inventor de projetos mirabolantes, frases feitas, quer um dia
ser deputado, gente conhecida, Macabéa seria a sua primeira dama.
A
riqueza dos personagens é construída pela atuação brilhante de Marcela Cataxto,
na época uma jovem de apenas 19 anos descoberta por Suzana numa peça de teatro.
Além do grande José Dumont, já ator do cinema nacional. Ambos fizeram muitos
papéis de nordestinos no cinema e no teatro.
Durante
o processo, Suzana pediu insistentemente para que todos lessem o livro, só
depois apresentou o roteiro. Ela não se reduziu a reproduzir o livro, mas criou
algo novo, são duas obras geniais, cada uma com sua particularidade, mas ambas
trazem o retrato do sentimento humano.
Os
anseios de Macabéa eram pequeninos, mas maiores que o universo, apenas o amor. Mas
seu destino talvez carregue a tristeza como sina. Já sem Olímpico, que lhe
disse em alto e bom tom: - Você é um maracujá de gaveta; diante da cartomante,
interpretada por ninguém menos do que Fernanda Montenegro, ela houve que haverá
um príncipe em sua vida, a esperança, na verdade, é o seu fim trágico. Sozinha,
oculta, há tantas como ela que estão por aí.
“A Hora da Estrela” é um marco do cinema
nacional e serve de referência para o cinema independente no retrato do
submundo urbano. Atualizando este texto em 2020, a grande Suzana Amaral nos
deixa. Só nos resta dizer: “Vá em paz, mestra, seu legado é eterno!”