Por Daniel Neves
Existe
um fator que mencionamos na raiz do projeto Zine Gueto – Metragem e que
transformou a maneira de se fazer cinema, qual seja, a mudança na captação de
película, material extremamente caro e sensível, para o digital, mais barato e
mais ágil. Com o avanço da tecnologia cresceu a quantidade de pessoas que
puderam ter acesso aos equipamentos mínimos para se produzir filmes. No Brasil
dos últimos 15 anos, vamos observar diversos grupos do chamado cinema
independente, feito com poucos recursos, mais autoral, e em boa parte dos casos
por fora de editais públicos.
Historicamente
o cinema sempre foi uma arte cara, basta notar o modelo americano dos grandes
estúdios, mega corporações que monopolizam o processo de produção e distribuição
em quase todo o mundo. Essa indústria centralizadora na forma afeta também o
conteúdo através de uma padronização da criação artística e temática, onde os
filmes são produtos descartáveis feitos em larga escala.
Por
fora do domínio de Hollywood, estão os cinemas nacionais que lutam
incessantemente para ter uma pequena fatia do mercado de distribuição em seus
próprios países e, é claro, o dito “cinema de arte”, supostamente contraponto
da indústria que se reduz a fazer filmes para meia dúzia de intelectuais de
festivais. Esses filmes, embora nem se comparem ao orçamento americano,
inclusive estando praticamente a margem deste, ainda são caros, considerando os
valores para a maioria da população brasileira, por exemplo.
O
fato de um filme ser feito com ou sem dinheiro não determina necessariamente a
sua qualidade enquanto arte que toca o público e diz algo sobre a vida. A
questão aqui é mais objetiva, trata – se das condições que se tem para fazer.
Ora,
se já é difícil fazer filmes sem grana, imagine nas periferias urbanas, locais
geralmente afastados dos centros e espaços culturais, onde educação, transporte
e saúde são precários, há uma desgastante carga horária de trabalho, problemas
com saneamento básico e condições de moradia, falta de segurança.
Para
quem é periférico, o buraco é mais embaixo, temos que sobreviver, temos que
pagar conta, segurar as tretas do dia – dia. Sem poder fazer um curso de cinema, temos de lidar com os desafios da nossa vida pessoal e com a incompetência
de um estado corrupto que é sustentado por nós.
Como,
então, vamos fazer cinema? Certamente queremos falar de nossas vivências, de
nossas raízes, das mazelas que presenciamos, romper com a imagem que a mídia
faz do gueto, é de dentro do processo.
Nesse
contexto, surgiram diferentes “coletivos” nas quebradas das metrópoles
brasileiras, Cine Becos, Cine Escadão, Éguas Audiovisual, Cinema da Baixada
Fluminense, Filmagens Periféricas e o NCA (Núcleo de Comunicação Alternativa).
Essa efervescência na cena do vídeo tem uma ligação com o atual movimento de
cultura periférica como um todo, na literatura, no teatro, na música.
Porém,
não nos enganemos ao criar uma “vanguarda cultural” diferenciada nas quebradas,
nem pensemos que estas se reduzem a violência e pessoas alienadas que não sabem
a verdade política do mundo. A cultura sempre existiu pelos guetos, será que
teremos de relembrar Cartola, Nelson Cavaquinho, Viola Nordestina, Roda de
Choro e a imensa diversidade cultural que constitui a nossa história, desde os
ambientes rurais aos urbanos?
O
cinema de periferia, em alguns filmes, traz muito essa ideia da cultura
popular, inclusive quando faz exibições no próprio bairro, geralmente para
pessoas que fizeram ou vivenciaram o processo do filme. Num encontro que traz
reflexão, mas traz prazer, como ouvir o sambista tocando no boteco.
Todavia,
não temos como afirmar que existe um único cinema de periferia, na verdade isso
é mais uma generalização acadêmica que se refere a grupos embrionários de algo que está
dando os primeiros passos. São várias periferias, mais do que isso, várias
pessoas que tem sua visão, sua experiência, seus anseios. Além disso, essa
identificação geográfica carrega outros problemas, por exemplo, o que é
periferia? Como definir um cinema apenas pela sua localização exata? Se é feito
no centro não vale? Quais bairros se enquadrariam nisso? Quem define?
Hoje,
na Companhia Bueiro Aberto, costumamos dizer que não estamos no cinema do
gueto, mas no gueto do cinema, isto é, todo filme produzido de forma
independente, fora da grande indústria, sem tentar equalizar isso a partir de
onde mora ou como vivem as pessoas que fazem o trabalho.
Esse
cinema independente tem um lugar privilegiado, a liberdade artística, ele não
precisa se submeter a qualquer padrão, seja do mercado, seja político, seja
estético, pode criar sua própria maneira de fazer, experimentar os gêneros.
Desse modo, não faz sentido pra ele a diferenciação entre cinema de arte e
cinema comercial.
Infelizmente,
ainda sofre com a distribuição, não é muito visto, mas tem imenso potencial
para quebrar o monopólio do mercado e apresentar novas formas de produzir e
pensar o mundo.
(Imagens do cineasta brasileiro Glauber Rocha, um dos idealizadores do movimento Cinema Novo, ocorrido entre os anos 50, 60 e 70)