sexta-feira, 26 de junho de 2020

SUZANA AMARAL E "A HORA DA ESTRELA"


Publicado na terceira edição do Zine Gueto - Metragem, Julho de 2017
Por Daniel Neves 
         
          Ao assistirmos a adaptação para o cinema de um livro que já lemos, é comum a sensação de decepção: “o livro é melhor, faltou isso e aquilo”. Essas afirmações geralmente vêm do fato de não exigirmos do filme uma “adaptação”, mas uma reprodução total do que fora escrito.


(A diretora Suzana Amaral)

            Acontece que cinema e literatura, apesar de dialogarem, são expressões artísticas bem distintas. O escritor de um livro, por exemplo, tem muito mais liberdade do que o roteirista de um filme, já que aquilo que ele escreve existe por si mesmo, não será modificado. O roteirista redige pensando em como aquilo será realizado, sendo que a peça original sofrerá interferência de uma série de profissionais que vão realizar aquilo em imagens e criar o mundo daquela história. Daí ser impossível se traduzir um livro inteiro em imagens, pois este não é feito para tal objetivo.


(Marcélia Cartaxo em "A Hora da Estrela")

             Boa parte dos filmes presentes na história do cinema são adaptações de livros. Se por um lado esperamos demais deles, por outro alguns de fato fogem totalmente da ideia central do autor. Segundo a consagrada cineasta brasileira Suzana Amaral, não cabe à cineasta fazer um livro filmado, mas captar o conceito da obra, assim pode excluir e adicionar cenas, mudar a trama.
            Suzana dirigiu um filme fundamental na tradição do cinema brasileiro e que nos serve como base: “A Hora da Estrela”, de 1986, é adaptado do livro homônimo de Clarice Lispector e narra a saga de Macabéa, uma migrante nordestina solitária que se instalou no Rio de Janeiro.
Imagine seres humanos totalmente anônimos, experiências que não são vistas pela sociedade, personagens excêntricos, simples, profundos, malucos, quietos, esquecidos. Vai entender... Esse é o filme de Suzana, esse é o livro de Clarice, cada um feito de um jeito.
            No livro, temos um narrador (Rodrigo S.N), que nos deixa nervoso ao demorar 26 páginas para apresentar o que ele chama de incompetência, aquela que vê a sua ferrugem no espelho, Macabéa. No filme, o narrador não existe, a diretora vai direto para ela. Isso porque a parte do narrador é muito literária.
            Deixemos o livro de lado e observemos o universo suburbano em que vive aquela tímida datilógrafa, inocente, parece que não cresceu, com suas roupas fora de moda, vivendo na pequena pensão do subúrbio, chega a ser porca, come enquanto digita, belisca uma coxa de frango enquanto mija num pinico. Se tiver anseios, são inalcançáveis, só pode alçar as coisas mais simples.
            No amor, essa nordestina vai se aconchegar com quem está próximo dela, Olímpico, um sonhador trabalhador vindo da Paraíba. Os dois se encontram em meio à urbanidade, acham - se um no outro.
            Dentro dos seus mundos tão singulares, cortam as cidades, ela cheia de perguntas, a curiosidade pueril que adentra a profundidade da vida sem licença ou enfeites, ele como louco, inventor de projetos mirabolantes, frases feitas, quer um dia ser deputado, gente conhecida, Macabéa seria a sua primeira dama.
            A riqueza dos personagens é construída pela atuação brilhante de Marcela Cataxto, na época uma jovem de apenas 19 anos descoberta por Suzana numa peça de teatro. Além do grande José Dumont, já ator do cinema nacional. Ambos fizeram muitos papéis de nordestinos no cinema e no teatro.
            Durante o processo, Suzana pediu insistentemente para que todos lessem o livro, só depois apresentou o roteiro. Ela não se reduziu a reproduzir o livro, mas criou algo novo, são duas obras geniais, cada uma com sua particularidade, mas ambas trazem o retrato do sentimento humano.
            Os anseios de Macabéa eram pequeninos, mas maiores que o universo, apenas o amor. Mas seu destino talvez carregue a tristeza como sina. Já sem Olímpico, que lhe disse em alto e bom tom: - Você é um maracujá de gaveta; diante da cartomante, interpretada por ninguém menos do que Fernanda Montenegro, ela houve que haverá um príncipe em sua vida, a esperança, na verdade, é o seu fim trágico. Sozinha, oculta, há tantas como ela que estão por aí.
         “A Hora da Estrela” é um marco do cinema nacional e serve de referência para o cinema independente no retrato do submundo urbano. Atualizando este texto em 2020, a grande Suzana Amaral nos deixa. Só nos resta dizer: “Vá em paz, mestra, seu legado é eterno!”