terça-feira, 27 de outubro de 2020

Mostra Guarulhense de Cinema 2020 faz história

 Cinema Nosso como síntese de múltiplas determinações.

Por Renato Queiroz

No nosso trabalho Netfake há um personagem, um cineasta gourmet, Jacan Luc Godard, que define profeticamente que Guarulhos nunca terá cinema real porque é uma cidade que fede, com um povo desprezível e sem cultura e que o nosso cinema é pobre e sem complexidade técnica. Evidentemente trata-se de uma caricatura que traça um corte entre o que é o elitismo cultural e a criação autêntica de um Cinema Nacional e Popular, para resgatar um termo que aparece nos debates do Cinema Novo.


Em uma das edições do Zine Gueto Metragem eu escrevi um texto que relembrava a canção de Caetano dizendo que escrever é preciso, filmar não é preciso. Aí eu apontava que era necessário que escrevêssemos sobre o que produzíamos e também escrever sobre o que assistíamos, sejam clássicos, filmes da grande indústria, cinema independente, filmes em sua diversidade. Defendi isso exatamente porque a grande ideia, acredito, seja a possibilidade de encontrarmos uma muito saudável multiplicidade de cinemas no meio do caminho. Síntese de múltiplas determinações.
Nós, a molecada de Guarulhos que ousou fazer cinema numa cidade sem políticas públicas e editais, criamos a possibilidade de escrever roteiros, de produzir, estudamos fotografia, iluminação, narrativa, atuação e finalmente, seja da maneira que for, encontramos os meios para realizar parte da pós produção, a edição e a montagem ao menos.
Encontramos, no entanto, dificuldades para distribuir os filmes, para acessar os espaços de circulação cultural e comercial do nosso trabalho, de se profissionalizar no sentido de gerar possibilidades de trazer o pão para nossa mesa mediante aquilo que sabemos e queremos fazer. Um caminho de resistência é oferecido pela companheirada do Cineclube Incinerante que do zero e sem apoio da prefeitura, a não ser quando esta queria receber algum reconhecimento sem o devido esforço, criou a belíssima Mostra Guarulhense de Cinema, que chega a sua VI Edição com uma diversidade enorme de produções, de produtores, de gêneros. Um panorama que, a cada dia mais, nos dá algum otimismo e coragem para continuar.
Para além disso, há também, hoje, um esboço mais bem elaborado de uma crítica do que gosto de chamar de Cinema Nosso, há uma variedade de mídias que debatem o Cinema da cidade, desde podcasts, trabalhos acadêmicos, canais no youtube, jornais, zine, revista, muita coisa que aponta destaques e impressões sobre essa cena. O nosso isolamento, enquanto exclusivamente “objetos de estudo”, está sendo rompido, passo a passo, e vê-se nascente uma crítica de nossa cena que também nos ajuda a entender essa multiplicidade.
Nesta VI Mostra, me alegrou muito poder entregar um documentário mais social, “ Nós das Ruas”; um mais cultural, “Um Dia de Várzea” – revisitando também o tema do futebol que gosto muito; uma ficção de suspense, “O Sentido da Morte”; e uma de comédia, “Netfake”, gênero o qual sempre flertei, mas ainda não tinha arriscado e creio que, em certa medida, tenha funcionado bem. Comédia que também foi explorada no filme “Minha vida em quarentena”, de Janaína Reis.
Falando nisso, me emocionaram bastante os documentários “Cartas de um Poeta” e “Roda das Histórias”, ambos filmes sensíveis, poéticos, voltados para a criação de narrações, seja por via caligráfica e mais solitária, como a do senhor Francisco Grosso e suas epístolas tão particulares, ou falada e coletiva como as histórias fortes e marcantes compartilhadas por aquele grupo de mulheres. A visão cinematográfica que congrega e busca similaridades nas suas linguagens também fica por conta da camaradíssima Janaína Reis.
“Tupinambá Subiu a Serra” é um filme social, com uma temática atual e que traz em voga um debate necessário e urgente sobre demarcação das terras indígenas, sobre a necessidade de uma convivência social que respeite a pluralidade e as particularidades dos povos indígenas dentro de sua compreensão de si mesmo. Mariátegui talvez nunca tenha sido tão atual, ainda mais depois da vitória popular na Bolívia e do desastre que é o governo brasileiro em diversos aspectos, e esse é mais um deles.
O grande filme da mostra, posso dizer, foi “Para Miguel, com Amor”, de Daniel Neves, o primeiro longa -metragem de ficção da Companhia Bueiro Aberto, um filme que assume tons épicos por vezes, mas singelo por outras, que fala de amor e de contradições do dia a dia, como vício em remédios ou fazer um trabalho de escola, mas que no final das contas acaba por ser um filme sobre o amor aos livros, sobre a luta pela educação pública no Brasil, sobre as contradições da falsa democracia conquistada na constituinte de 88, fala de contradições familiares profundas, sobre desilusão e recuperação da esperança.
Fiquei impressionado com a qualidade técnica de alguns filmes, como a fotografia e a captação de áudio do filme “O Auxílio” de Rafael dos Anjos, com uma narrativa divertida e interessante e a boa atuação do parceiro Thom Oliveira, também da Bueiro; o trabalho dos camaradas do coletivo Kinoférico com ótimos roteiros, montagem e atuação no filme “Dias de Glória” de Ingrid Novak e Fernanda Campos, que me lembrou o estilo de Spike Lee, ainda mais com aquele final apresentando dados da violência policial no Brasil, que foi talvez o ponto alto para mim como espectador, e “Ruptura”, com atuação infantil, o que é sempre um desafio, e que foi muito bem trabalhada, e discutindo um tema relevante sobre questões familiares.
Não quero me alongar em listas, pois minha memória faz com que eu corra o risco de ser injusto, então rapidamente cito o trabalho bastante experimental e sempre relevante de Moisés Pantolfi, com seu “Atual Auto – Retrato” e “Análise do Modelo Articulado”; André Okuma com participação em alguns trabalhos e “Nuvem Baixa”; o Cinema incômodo e necessário de Rubens Melo com “Sinfonia para o Vampiro” e “Coroa da Morte” ; a genial Juliana Seabra, que está na ficção científica “Escravidão 2.0”, de Fabiana Barbosa.
Todas essas múltiplas determinações formam o que hoje estamos ousando chamar de Cinema Guarulhense, o que me parece muito interessante como identificação regional e como ponto de convergência, que nos permita nos compreendermos enquanto categoria, artística e profissional, e assim alçarmos novas conquistas que começam a se desenhar de forma mais elaborada com os passos que estamos dando juntos, passos no sentido da profissionalização, da ampliação da distribuição, da ocupação dos circuitos dos festivais, de políticas públicas e da mais ampla garantia de liberdade criativa.
Um Grande Abraço e vida longa ao Cinema Nosso!

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