Publicada na edição 4 do Zine Gueto - Metragem
Entrevista por Daniel Neves
Daniel Fagundes é um dos fundadores do NCA (Núcleo de Comunicação
Alternativa)
GUETO – METRAGEM: Como nasceu o NCA?
FAGUNDES: Surgiu do encontro meu, do
Fernando e do Diego, três caras das periferias da Zona Sul de São Paulo,
respectivamente Campo Limpo, Capão e Piraporinha. A gente se trombou num curso
de audiovisual realizado pela Ação Educativa e destinado a jovens que tinham
uma ligação com alguma militância juvenil nas quebradas, no começo do ano de
2005, e ao final do processo percebemos que vários cursos de audiovisual geram
uma expectativa positiva nos jovens, mas depois não têm uma estrutura pra dar
continuidade. Aí decidimos continuar a produzir por nós mesmos, fazer algo que
pudesse falar das nossas coisas. Notamos muitas demandas em diferentes frentes,
tanto a cobertura dos movimentos culturais da quebrada, ter um registro disso,
como fazer um contraponto ao que a mídia de massa produz a respeito da
população periférica, tipo um enfrentamento mais de mídia – ativista, que tá
ligado a ideia de produzir um vídeo - denúncia, como documento que expõe os
abusos de autoridade, da polícia até as questões relacionadas às ocupações,
vídeos que pudessem contribuir nessas lutas. E também tinha essa coisa de
experimentar a linguagem, de observar o quanto a estética é política, pensar um
audiovisual contra – hegemônico. Mas o NCA surgiu dessa angústia aí, da vontade
de gritar, de ser um canal de comunicação que pudesse colocar outra narrativa e
disputar esse espaço simbólico do audiovisual.
GUETO – METRAGEM: Vocês fizeram muitos
documentários sobre cultura popular, como um emblemático acerca de “Solano
Trindade”. Como é isso?
FAGUNDES: Vimos a possibilidade de fazer
algo, como dizia Paulo Freire, entre a denúncia e o anúncio, porque sempre nos
incomodou também essa coisa de ficar amarrado a um rótulo, tipo panfletário, a
gente pode acabar muito viciado, perder nossa criatividade nos diversos
assuntos. Por isso fomos atrás de pesquisar e estudar a cultura popular urbana
e a tradicional, trazendo o livro Povo Brasileiro, do Darcy Ribeiro, entender o
conceito de identidade, de ser periférico, principalmente no documentário. Daí
veio o doc em 2006 sobre o poeta Solano e a família Trindade, um resgate desses
personagens tão importantes na nossa formação.
GUETO – METRAGEM: O documentário é um
gênero muito comum no cinema independente. Aparentemente, pelo menos na parte
logística, ele é mais barato e simples que uma ficção. Essa escolha pelo
documentário é estética ou é logística? Ou é as duas coisas?
FAGUNDES: Eu acho que de fato tem essa
questão de recursos, em termos de infraestrutura o doc é um pouco mais viável.
Mas se você olhar nossa trajetória, a gente começa com uma ficção, em 2005, um
videoclipe de Hip Hop, “A Ilha” é a história de três personalidades na
quebrada, um cara que é militante, trabalhador, mas é varzeano. Esse vídeo nos
trouxe a coisa da construção do roteiro e com ele ganhamos um concurso e
podemos comprar a primeira câmera do grupo. Até tem uma história interessante,
o Fernando e o Diego cavaram um barranco e ganharam trezentos conto pelo
trampo, aí foi o orçamento que custeou a produção, os 300 conto virou 2000. Em
2007 a gente fez também uma experiência de doc – ficção ”Paralelo espaço de
Realidade”, discutindo essa questão da insanidade no sistema capitalista,
alguns amigos nossos atuaram. Mas de fato fizemos uma série de documentários,
como o próprio “Videolência”. Sempre notamos que existe uma linha muito tênue
entre documentário e ficção, assim como o documentário não reproduz toda a
realidade, a ficção não é totalmente mentira e pode trazer mais verdade que o
doc, é relativo.
GUETO METRAGEM: Em 2009, vocês fizeram o
“Videolência”, um filme marcante na caminhada do NCA e que retrata o movimento
do cinema de quebrada. Como você vê a importância da mudança do digital para a
película no contexto do cinema de perifeira?
FAGUNDES: O mais correto a se dizer
seria que o digital proporcionou uma popularização da linguagem audiovisual, o
acesso a equipamentos, ainda que a gente já tenha tido antes uma série de
experiências com película do ponto de vista dos populares, o próprio Zózimo
Bulbul, que pegava sobras de película dos sets onde era ator e ia fazer os
filmes dele, o Ozualdo Candeias da Boca do Lixo, nessa coisa meio de tomar de
assalto, é uma característica que não mudou, porque o audiovisual mesmo não é
feito pra nós, é pra indústria, inclusive esse digital. Quando a gente começou,
falávamos que fazíamos vídeo, não cinema, pra marcar uma posição política de se
ligar a essa história da produção popular da BVP (Biblioteca de Vídeo Popular)
na década de 80. Esse nome “cinema de quebrada” traz em si mais uma caixinha
acadêmica onde se enquadram as pessoas que eles querem apontar que fazem um
cinema que é diferente do deles, seja por causa da precariedade, seja pelos
temas. É um termo cunhado pela antropóloga da USP Rose Satiko, depois de ver
nossos trabalhos. Daí a gente traz o nome Videolência contrapondo o filme que
ela tinha produzido um ano antes, em 2008, que chamava justamente “Cinema de
Quebrada”, queríamos dizer que éramos um vídeo marcado pela violência do
estado, da precariedade geográfica, saúde, escola, moradia, a gente achava que
esse nome viria pra maquiar uma realidade que é feia. No Videolência buscamos
vários grupos que traziam sua visão sobre a periferia e que tinham em comum a
posse de uma câmera de vídeo, não era uma câmera de cinema, apesar da linguagem
ser parecida. Mas depois a gente foi ficando mais flexível e viu que o ponto
era não perder nossa origem, tanta faz o termo.
GUETO – METRAGEM: Como você vê a cena do
cinema de periferia atualmente?
FAGUNDES: O ano de 2010 foi nosso auge,
a gente tava com uma articulação muito forte, com o circuito de vídeo popular
funcionando, grupos do Brasil se reunindo e propondo coisas juntos,
conquistamos voz na ANCINE, estávamos organizados, discutíamos a questão do
investimento, políticas de incentivo a coletivos. Mas após 2010 começou a ter
uma caída, o circuito encerrou, a articulação de vídeo popular parou de
realizar reuniões e vários coletivos, alguns até que estiveram no Videolência,
se encerraram, outros novos surgiram também, mas poucos sobreviveram. Eu acho
que o cinema de quebrada se enfraqueceu, principalmente pelas políticas de
investimento que são poucas, até o NCA está agora encerrando as atividades
muito por isso, a gente foi envelhecendo, as responsas vêm surgindo, junte isso
à nossa desarticulação pra cobrar políticas pro setor, lutar por uma lei de
fomento ou edital de vídeo popular.
GUETO – METRAGEM: No Videolência, além
da parte documental, há cenas de ficção feitas em formato lúdico, simbólico,
quer dizer, não realista, como as crianças que brincam de polícia e ladrão e
usam pedaços de canos e madeiras como se fossem armas, não é necessário filmar
a polícia e o ladrão para se entender a mensagem.
FAGUNDES: O Glauber Rocha lá no cinema
novo já trazia a estética da fome, de na precariedade a gente resolver os
problemas técnicos. Em “Terra em Transe”, por exemplo, ele usa uma arma de
madeira, o cinema é algo simbólico, você busca representar o real de acordo com
o que você tem, mas por outro lado eu ficava irritado por não ter grana, não
poder gravar com grua e tal, uma cenografia, direção de arte. Queríamos ter o
dinheiro pra fazer o corre, mas o foda é que esse recurso não pode mudar o
nosso jeito de ser.
GUETO – METRAGEM: E como funcionou a
distribuição dos filmes?
FAGUNDES: A gente teve um projeto, desde
2007, a Videoteca Popular, que é nosso principal canal de distribuição, com
exibições públicas, criação de acervo, montamos filmografias de grupos,
distribuição em correios, gravação de mídias em DVD, fizemos eventos em
escolas, espaços culturais e tivemos nossa própria sede, como uma espécie de
locadora gratuita, foi um puta espaço formativo, vimos de Chaplin a Cinescadão,
de Leon Hirszman a Filmagens Periféricas. O NCA foi um dos poucos grupos que
realizou formação, produção, exibição e distribuição, o cinema, para nós, só
faz sentido quando a gente cumpre esses quatro pontos pra chegar no público que
queremos, da quebrada. Nas exibições, passamos por experiências malucas, de uma
tiazinha do Grajaú que manjava mais de neorealismo italiano do que os caras da
academia, pra nós é formar público.
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